quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Silêncios



O que mais retenho na memória são os silêncios
Vales profundos entre as colinas das palavras
Espaços onde o vento adeja e marcam compassos
Onde tantas vezes ficou a sombra de um adeus
Outras tantas, murmúrios de amor calados

O ruído do mar é a pauta de todos os silêncios
Dos que procuraram paz e lá a encontraram
E dos que lá estão sem nunca lá terem estado
O mar é o paraíso dos olhares encarcerados
Por rios de lágrimas que ali desaguam

Renascem em cânticos, rimas, beijos
Emergem em névoa de sal rumo às estrelas
Que com ela se enfeitam alumiando amados
Nas noites em que da terra ao céu, tudo cala
Para escutar os silêncios dos amores eternos


Maria de Jesus




quarta-feira, 28 de setembro de 2016













Há mãos que dizem tudo,
Que tocam como quem pensa,
Cuja polpa é veludo
E cor de ternura imensa.
São mãos que emprestam luz
Aos dias mais soturnos,
Modelando o que nos conduz
Entre espectros diurnos...

Eu conheço umas mãos assim
A escrever no ser profundo,
Com lavanda, e com jasmim,
Os cinco cantos do mundo.

Joaquim Castanho

sexta-feira, 23 de setembro de 2016




A Poesia Vai Acabar

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —

Manuel António Pina


quarta-feira, 21 de setembro de 2016




Castelo de Risos


Horizontes semeados
Estrelas benfazejas
Fábulas encantadas
Em castelos de risos
Pontilhados de ternura
Existem risos e risos que falam
Dialectos rendilhados que a Alma
Esconde nos cercados do cansaço
Existem risos…sinos dobrados

Maria Adelina 


sábado, 17 de setembro de 2016

No aniversário de José Régio, partilhamos esta relíquia...

José Régio - 17 Set 1901 // 22 Dez 1969




Ícaro



A minha Dor, vesti-a de brocado,
Fi-la cantar um choro em melopeia,
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado,
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a.

Por longo tempo, assim fiquei prostrado,
Moendo os joelhos sobre lodo e areia.
E as multidões desceram do povoado,
Que a minha dor cantava de sereia...

Depois, ruflaram alto asas de agoiro!
Um silêncio gelou em derredor...
E eu levantei a face, a tremer todo:

Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro!
E, misérrima e nua, a minha Dor
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo.

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo' 


sexta-feira, 16 de setembro de 2016







Não Tenho Pressa










Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa 





Chuva

Chove uma grossa chuva inesperada,
Que a tarde não pediu mas agradece.
Chove na rua, já de si molhada
Duma vida que é chuva e não parece.

Chove, grossa e constante,
Uma paz que há-de ser
Uma gota invisível e distante
Na janela, a escorrer...

Miguel Torga, Diário II, 1943




quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Bocage, Poeta do Povo (Setúbal)

Manuel Maria Barbosa Bocage – 15 Setembro 1765 – 21 Dezembro 1805










Manuel Maria Barbosa Bocage






Quantas vezes, Amor, me tens ferido?

Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!

Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado,
Depois com ferros vis se vê cingido:

Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da existência à morte!

Travam-se gosto, e dor; sossego e lida;
É lei da natureza, é lei da sorte,
Que seja o mal e o bem matiz da vida.

Bocage




terça-feira, 13 de setembro de 2016

Incomparável Natália...


Resultado de imagem para natália correia poemas



Auto-retrato

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.

Natália Correia


Natália Correia, 13 de Setembro de 1923 — 16 de Março de 1993


segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Saudade



Saudade


Na penumbra da mente
soltam-se reminiscências
nomenclaturas de dores e alegrias
que extravasam do coração
e fazem chorar.
Oh, Saudade!
Dos tempos…
dos cheiros e dos sabores,
dos pontos de partida,
e das noites mal dormidas,
dos encantos e desencantos,
tesouros que trago comigo
a alegrar o coração
amores que me cativaram,
aonde estão?
Oh, Saudade!
Que o tempo nunca desgasta
seiva transparente da alma
cantada na melancolia do fado
és tanta, és tão forte
e misteriosa palpitas,
mesmo depois da morte.
Oh, Saudade!
passado sempre presente
fado da alma da gente!


Álvaro Lima






quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Camilo Pessanha - 7 de Setembro 1867 // 1 de Março 1926



Vida
Choveu! E logo da terra humosa
Irrompe o campo das liliáceas.
Foi bem fecunda, a estação pluviosa!
Que vigor no campo das liliáceas!
Calquem. Recalquem, não o afogam.
Deixem. Não calquem. Que tudo invadam.
Não as extinguem. Porque as degradam?
Para que as calcam? Não as afogam.
Olhem o fogo que anda na serra.
É a queimada... Que lumaréu!


Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'
 


sábado, 3 de setembro de 2016




Não sei onde para a minha alma!
Já a sonhei lírio de luz e escuridão
Não sei em que altar reza por mim
Não sei se chora esta infinda escravidão.

Essa asa de borboleta louca e negra
Que esvoaça em mil penas lá no fundo
É uma asa de treva e de tristeza
Que me eleva a mendiga neste mundo.

Não posso deixar que me vença e me leve
Viúva negra de um tão negro céu
Vai, desprende-te de mim, leva esse véu.

Dobrem os sinos, chorem meu pranto
O meu pássaro branco adormeceu
Ai, mansas asas, pássaro cândido, ainda és meu.
                           

 Anabela Coelho




CREDO

Eu creio em duendes
Em fadas e em anjos, demónios,
E creio até em milagres
Como uma rosa a florir

Creio nos astros, nos Deuses,
Nas forças que me correm nas veias,
Nos sonhos que de noite me assaltam
Vozes vindas, algures, do Além…

Creio nos Atlantes de Natália Correia
No lado oculto das coisas
Nos mundos invisíveis
Que a imaginação descobre
No vento que sopra e que passa

Creio nas rútilas cores que me pintam
Nas luzes e sombras que cercam as minhas palavras
No arco-íris que me agarra por dentro
No regaço maternal dos teus braços.

Creio, vejam bem, em bruxas e ninfas
E consigo até ajoelhar-me em igrejas
Na bafienta penumbra dos altares e retábulos
Nos salmos que ecoam por dentro dos claustros…

Creio ser um viajante contínuo
Por entre a multidão solitária
Atado a cilícios de sangue
Guiado pelo caminho da busca…

Creio no teu corpo faminto
No teu corpo aberto
Como um oásis com tâmaras e água  
E uma casa onde dormir
Nos cansaços…

Creio até que Deus talvez nem exista
Que o corpo se resumirá à mortalha
Mas vou em frente, denodado, forte,
Armado com a força da busca…

Creio enfim no homem
No seu destino e caminho
No sangue que os pés, caminhando,
Vão deixando ao longo da estrada,
Mesmo que tudo seja ilusão e quimera…

A. Alves Cardoso