domingo, 27 de abril de 2014

Vasco Graça Moura - 3 Janeiro 1942 // 27 Abril 2014





'A Portugal está a faltar muita poesia' 



Vasco Graça Moura



Soneto do amor e da morte - Vasco Graça Moura





Soneto do amor e da morte


Quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. Quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

Quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.



Vasco Graça Moura, in "antologia dos sessenta anos"


O suporte da música - Vasco Graça Moura



O suporte da música pode ser a relação
entre um homem e uma mulher, a pauta
dos seus gestos tocando-se, ou dos seus
olhares encontrando-se, ou das suas

vogais adivinhando-se abertas e recíprocas,
ou dos seus obscuros sinais de entendimento,
crescendo como trepadeiras entre eles.
O suporte da música pode ser uma apetência

dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se
ramifica entre os timbres, os perfumes,
mas é também um ritmo interior, uma parcela
do cosmos, e eles sabem-no, perpassando

por uns frágeis momentos, concentrado
num ponto minúsculo, intensamente luminoso,
que a música, desvendando-se, desdobra,
entre conhecimento e cúmplice harmonia.


Vasco Graça Moura, in "antologia dos sessenta anos"


Insinceridade - Vasco Graça Moura

Insinceridade quis-nos aos dois enlaçados
meu amor ao lusco-fusco
mas sem saber o que busco:
há poentes desolados
e o vento às vezes é brusco

nem o cheiro a maresia
a rebate nas marés
na costa de lés a lés
mais tempo nos duraria
do que a espuma a nossos pés

a vida no sol-poente
fica assim num triste enleio
entre melindre e receio
de que a sombra se acrescente
e nós perdidos no meio

sem perdão e sem disfarce,
sem deixar uma pegada
por sobre a areia molhada,
a ver o dia apagar-se
e a noite feita de nada

por isso afinal não quero
ir contigo ao lusco-fusco,
meu amor, nem é sincero
fingir eu que assim te espero,
sem saber bem o que busco.

Vasco Graça Moura, in "antologia dos sessenta anos"


quarta-feira, 16 de abril de 2014

Para ti - Mia Couto

Foi para ti
que desfolhei
a chuva...

Para ti soltei
o perfume da terra...
Toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei
todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos,
abri os gomos do tempo,
assaltei o mundo
e pensei que tudo
estava em nós...

Nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos!


 Mia Couto




SAUDADE

SAUDADE

À tua imagem
Eu fui crescendo,
Acreditando que me ias vendo.
Esperando um carinho teu,
Esperando um toque.
Mas, tu não vinhas…
Mantinhas-te longo, afastado.
No teu olhar eu podia ver,
A tua vontade de estar mais perto,
Mas, o medo…
Sempre vencia.

Oh! Tamanha dor a minha…
Era apenas uma criança,
Aguardando o teu mimo!

Agora, existe a saudade.
Agora, existe a falta,
Desse amor belo e pleno…

Tenho saudades tuas…
Imensas saudades tuas!...
Agora, já mulher…continuo a ter saudades tuas!...



    15 Abril 2014                                                           Selena Rocha





segunda-feira, 14 de abril de 2014

Distância - Fernanda de Castro



Não vás para tão longe!
Vem sentar-te
Aqui na chaise-longue, ao pé de mim...
Tenho o desejo doido de contar-te
Estas saudades que não tinham fim.

Não vás para tão longe;
Quero ver
Se ainda sabes olhar-me como d'antes,
E se nas tuas mãos acariciantes,
Inda existe o perfume de que eu gosto.

Não vás para tão longe!
Tenho medo
Do silêncio pesado d'esta sala...
Como soluça o vento no arvoredo!
E a tua voz, amor, como se cala!

Não vás para tão longe!
Antigamente,
Era sempre demais o curto espaço
Que havia entre nós dois...
Agora, um embaraço,
Hesitas e depois,
Com um gesto de tédio e de cansaço,
Achas inconveniente
O meu abraço.

Não vás para tão longe!
Fica. Inda é tão cedo!
O vento continua a fustigar
Os ramos sofredores do arvoredo,
E eu ponho-me a pensar
E tenho medo!

Não vás para tão longe!
Na sombra impenetrada,
Como se agita e se debate o vento!...
Paira nas velhas ruínas do convento
Que além se avista,
A alma melancólica d'um monge
Que a vida arremessou àquela crista...

Céu apagado, negro, pessimista,
E tu sempre mais longe!...


Fernanda de Castro,
 in "Antemanhã"




 (Enviado pela amiga Selena Rocha)


SE ÉS CAPAZ DE ... - Kipling


Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!

Rudyard Kipling


(Enviado pela amiga Áurea)

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Portugal - Jorge de Sousa Braga




Portugal

Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me
sentir como se tivesse oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os
infiéis ao norte de África
só porque não podia combater a doença que lhe
atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo mentira que o
Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino
nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer que nos
espera um futuro de rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver
se contraía a febre do Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um
resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar
uma pétala que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Se tivesse dinheiro comprava um Império e dava-to
Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e
idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os
pastéis de Tentugal
e o corpo cheio de pontos negros para poder
espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar
estava no poder nada de ressentimentos
o meu irmão esteve na guerra tenho amigos que
emigraram nada de ressentimentos
um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os
Lusíadas a nado na piscina municipal de Braga
ia agora propôr-te um projecto eminentemente
nacional
Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho que
Camões lá deixou
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca.

Poesia: Jorge de Sousa Braga



( enviado pela amiga  Adelaide Fontes)

Metade - Oswaldo Montenegro


METADE

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio;
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca;
Porque metade de mim é o que eu grito,
Mas a outra metade é silêncio...

Que a música que eu ouço ao longe
Seja linda, ainda que tristeza;
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante;
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade...

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
E nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
A um homem inundado de sentimentos;
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo...

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço;
E que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada;
Porque metade de mim é o que penso
Mas a outra metade é um vulcão...

Que o medo da solidão se afaste
E que o convívio comigo mesmo
Se torne ao menos suportável;
Que o espelho reflita em meu rosto
Um doce sorriso que me lembro ter dado na infância;
Porque metade de mim é a lembrança do que fui,
A outra metade eu não sei...

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais;
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço...

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade para faze-la florescer;
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção...

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade... também.

Oswaldo Montenegro


(enviado pela amiga Adelaide Fontes)

domingo, 6 de abril de 2014

No vazio das palavras - Isabel Rosete

No vazio das palavras


No vazio das palavras
Ecoam todos os sons,
Todas as pausas,
Todos os silêncios.

As palavras são punhais,
Cristais,
Dardos,
Sementes de criação…

Despedaçam,
Espelham.
Reluzem
Transluzem.

Persuadem,
Enfeitiçam.
Exortam,
Instigam…

Corpos
E almas,
Em união
E dis-persão…

Isabel Rosete




terça-feira, 1 de abril de 2014

Agostinho da Silva - O poeta

Meu Amor que Te Foste sem Te Ver 

que de mim te perdeste sem te amar
quem sabe se outra vida tu vais ter
ou se tudo se perde sem voltar

ou se é dentro de mim que tem de haver
tanta força no meu imaginar
que o poeta que é Deus o vá reter
e te dê vida e faça regressar

para de novo o sonho desfazer
num contínuo surgir e retornar
ao nada que dá ser ao que é querer
ao fado que só dá para se dar

por tudo estou amor e merecer
o que venha para eu te relembrar
só adorando o nada pretender
só vogando nas águas de aceitar.

Agostinho da Silva, in 'Poemas'