sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015




Rui Bello


27 de Fevereiro 1933 – 8 de Agosto 1978








Povoamento


No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates" 



quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015



Prendi a Poesia

Mantenho-a cativa num olimpo onde ela sobreviva
Com ou sem palavras, só para os deuses faz sentido
Há tanto tempo que partiste, perdi a conta
Se horas, anos ou eras, que importa
Na árvore da vida nada se apaga
Quiçá um dia, uma menina apaixonada
Desenhe num tronco a memória desbotada
Duns versos semente de alvoradas
Que o vento espalhou por aí
E o tempo desse futuro tempo ainda exista,
Vívido, prenhe de sentido, tão só,
Pelo amor resgate de que é feita a alma dum poema
Ou pelos campos de estrelas, sementeiras dos poetas


Maria de Jesus






David Mourão Ferreira


24 de Fevereiro de 1927 / 16 de Junho de 1996






Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira, in "Infinito Pessoal"



domingo, 22 de fevereiro de 2015

EM CIMA DO SOL








Em cima do sol, havia nuvens
Desvairadas, numa arrelia sem tempo
Prontas a rebentar em zaragata
Capazes de tapar o sol
Se descessem
Mas não desceram
Assustadas, fugiram para sul.


E o sol perdeu altura
Ficou mais manso
Sem cobertura de chuva
Ergueu os raios
Rejubilou.

Deitou-se em cima do mar
Numa almofada de espuma.

Diante de nós
Acordou criança
A esfregar os olhos
A balbuciar
Um doce
Deitado ainda
Em lençóis de maresia
Alvorada
Fresca.

E nós, ali.
O nosso sol nos braços
Nos abraços
Sôfregos
Famintos
Apressados
Em orvalhadas
Meninas
Amando
Um sol
O nosso sol.


Aida Araújo Duarte

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015






António Fernandes Aleixo 

 (Vila Real de Santo António, 18 de fevereiro de 1899 — Loulé, 16 de novembro de 1949) 







Ser Doido-Alegre, que Maior Ventura!


Ser doido-alegre, que maior ventura!
Morrer vivendo p'ra além da verdade.
É tão feliz quem goza tal loucura
Que nem na morte crê, que felicidade!

Encara, rindo, a vida que o tortura,
Sem ver na esmola, a falsa caridade,
Que bem no fundo é só vaidade pura,
Se acaso houver pureza na vaidade.

Já que não tenho, tal como preciso,
A felicidade que esse doido tem
De ver no purgatório um paraíso... 

Direi, ao contemplar o seu sorriso,
Ai quem me dera ser doido também
P'ra suportar melhor quem tem juízo.

António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..." 



terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Definição de Filho por José Saramago





“Filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar os nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e  de aprendermos a ter coragem.
Isto mesmo!
Ser pai ou mãe é o maior acto de coragem que alguém pode ter, porque é expor-se a todo o tipo de dor, principalmente da incerteza de estar agindo correctamente  e do medo de perder algo tão amado.
Perder?
Como?
Não é nosso, recordam-se?
Foi apenas um empréstimo.”

Texto de José Saramago
Pintura de MANU

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Num longínquo 13 de Fevereiro nasceu Agostinho da Silva para se tornar imortal





Meu Amor que Te Foste sem Te Ver

Meu amor que te foste sem te ver
que de mim te perdeste sem te amar
quem sabe se outra vida tu vais ter
ou se tudo se perde sem voltar

ou se é dentro de mim que tem de haver
tanta força no meu imaginar
que o poeta que é Deus o vá reter
e te dê vida e faça regressar

para de novo o sonho desfazer
num contínuo surgir e retornar
ao nada que dá ser ao que é querer
ao fado que só dá para se dar

por tudo estou amor e merecer
o que venha para eu te relembrar
só adorando o nada pretender
só vogando nas águas de aceitar.

Agostinho da Silva, in 'Poemas' 


domingo, 8 de fevereiro de 2015

A PRENDA

O menino
recebeu  a dádiva.

Era o seu dia, assim disseram.

Estranhou:
os outros dias não eram seus?

Se achegou.
Espreitou.

A oferenda,
era coisa tão nenhuma
que nem parecia existir.

 - O que é isso? Perguntou.
 - É uma prenda, responderam.

Que prenda poderia ser
se tinha forma de nada?

 - Abre.

Abrir como,
Se não tinha fora nem dentro?

 - Prova.

Como provar
o que não tem onde se pegar?

Olhou melhor.
Fixou não a prenda,
mas os olhos de quem lha dava.

Foi, então:
O que era nada
lhe pareceu tudo.

Grato,
retribuiu com palavra e beijo.

O que lhe ofereciam
era a divina graça do inventar.

Um talento
 para não ter nada.

Mas um
dom para ser tudo.


MIA COUTO

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Tu e Eu Meu Amor






Tu e eu meu amor 
meu amor eu e tu 
que o amor meu amor 
é o nu contra o nu. 

Nua a mão que segura 
outra mão que lhe é dada 
nua a suave ternura 
na face apaixonada 
nua a estrela mais pura 
nos olhos da amada 
nua a ânsia insegura 
de uma boca beijada. 

Tu e eu meu amor 
meu amor eu e tu 
que o amor meu amor 
é o nu contra o nu. 

Nu o riso e o prazer 
como é nua a sentida 
lágrima de não ver 
na face dolorida 
nu o corpo do ser 
na hora prometida 
meu amor que ao nascer 
nus viemos à vida. 

Tu e eu meu amor 
meu amor eu e tu 
que o amor meu amor 
é o nu contra o nu. 

Nua nua a verdade 
tão forte no criar 
adulta humanidade 
nu o querer e o lutar 
dia a dia pelo que há-de 
os homens libertar 
amor que a eternidade 
é ser livre e amar. 

Tu e eu meu amor 
meu amor eu e tu 
que o amor meu amor 
é o nu contra o nu. 

Manuel da Fonseca

Manhãs de Poesia - Fevereiro




terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

...recordando Natália




O Espírito

Nada a fazer amor, eu sou do bando 
Impermanente das aves friorentas; 
E nos galhos dos anos desbotando 
Já as folhas me ofuscam macilentas; 

E vou com as andorinhas. Até quando? 
À vida breve não perguntes: cruentas 
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando 
Ave estroina serei em mãos sedentas. 

Pensa-me eterna que o eterno gera 
Quem na amada o conjura. Além, mais alto, 
Em ileso beiral, aí espera: 

Andorinha indemne ao sobressalto 
Do tempo, núncia de perene primavera. 
Confia. Eu sou romântica. Não falto. 

Natália Correia