terça-feira, 29 de maio de 2018
domingo, 27 de maio de 2018
TESTAMENTO
TESTAMENTO
Depois de
fechar olhos
São livres
de vender as casas de renda, os pinhais
Os carros,
os móveis, as acções
De levantar
as poupanças, os depósitos a prazo
E o pouco
que tiver à ordem.
Mas hão-de
penar nos infernos
Se ousarem
vender a casa-mãe
Os aidos, as
terras que rodeiam a casa
E de onde
sempre brotaram águas boas e grandes.
Nem é pelo
valor
É pelos
passos, pelas mãos gretadas, terrosas
Pelos olhos
que ali se demoraram
Pelas
árvores que cresceram connosco
Familiares e
frutíferas
Pelos cheiros
que se entranharam na terra
E ressumam
Pelo mel das
colmeias amigas
Que
conheciam os donos
Pelos corpos
a amarem-se entre os fenos e trigos
Pelo
respirar antigo dos meus mortos
Pelas
palavras que impugnam os solos
Como bocas
presentes em tudo o que cresce
Como se elas
nascessem e morressem ali
Como nós.
Pelos nomes
familiares que lhes demos
Como se
fizessem parte da nossa família.
Ali estão os
rostos, os olhos, os sonhos
Ali estão os
segredos, as lutas, as veias jugulares da existência
Sinais
indeléveis, sinais de quem cuidou
Amorosamente
da terra e dela recolheu
os frutos
que enchem as tulhas
e os altos
fumeiros.
Há ali, em
tudo, vidas suspensas
Vidas que se
fundiram nos húmus
Que se
entranharam nos poros
E que são a
nossa identidade profunda.
Cada árvore,
é um todo, com alma, com nome.
Cada espaço,
a larga extensão de nós mesmos
E ali,
naquela harmonia que não se
Encontra nos
livros, abundam as vozes
Que dançam
ainda entre as árvores
E que não
devem espantar-se.
Eles
pertencem ali.
Nada ali é
anónimo. Tudo tem nome
As árvores,
as fontes, os sítios, os caminhos, os muros
E há uma
simbiose como se
A mão forte
do meu pai
Ainda
estivesse poisada no tronco das cerejeiras
Ou corresse
ainda pelo ondear das searas
Como o
acariciar-se o lombo molhado dos bois
Ou a voz
mais suave da mãe
Não fosse
capaz de espantar as aves que debicavam o sol
Nas negras
terras lavradas
Ou ainda se
ouvisse o rumorejar
Dos nossos
passos correndo
Atrás de
borboletas mágicas e pássaros alados.
Talvez vos
convença a não vender
Se forem
sentar-se, no crepúsculo,
Diante
daquela catedral
Onde reina o
silêncio de tantas vozes
Impressas
E hão-de
ouvir de certeza
Os meus
passos
No tempo das
cerejas, no tempo das uvas
Como a
lembrar-vos de que ainda
Ali moro.
Há em cada
tronco das árvores
Em cada muro
ou parede
A sombra de
quem acabou
De
tocar-lhes.
E vejo tudo
por entre as árvores
Como algo
fugitivo e distante
Como algo
perene e presente
É nesse
espaço que eu moro
E que
habitam as vozes de que sou feito
É um
território só compreendido
De quem vê
para dentro
Sentem-se no
alpendre
Defronte da
casa, junto à capela
E olhem em
volta
Tudo o que
vêm sou eu
E as vozes
de todos os outros
Daqueles que
ao morrer
Me deixaram
este mesmo desígnio
Vendam tudo,
mesmo tudo
Mas não me
vendam a alma.
António Alves Cardoso
O PÃO
O
pão adormecia longamente nas masseiras
Até
o forno vigoroso e forte
Se
encheu de lumes
E
aquela espera se transformar em rede cheia
De
saborosos paladares…
A
minha mãe, enfarinhada
Retirava
as broas
Que
haveriam de durar
Toda
a semana…
As
nossas bocas
Retalhavam
aqueles odores quentes
Como
uma plenitude toda
Digna
de filósofos…
António
Alves Cardoso
sábado, 26 de maio de 2018
Se... - (Ciclo António A. Cardoso)
Se...
Se
eu tivesse o dom da palavra
E
fosse tecelão de frases e verbos
Faria
um tapete imaginário de rosas
E
uma casa algures poisada nas nuvens...
Se
os dedos conseguissem ser violinos,
Oboés,
cítaras ou mágicas flautas
O
teu acordar seria sempre uma festa
E
adormeceria sob o pianíssimo de uma sonata barroca....
Mas
sou o que sou, limitado, imperfeito,
De
voz rouca e dedos sem asas
Mas
mesmo assim queria voar
Por
entre os céus dos teus braços abertos...
Que
ninguém é dono de todos os sonhos
Nem
pastor de futuros e ânsias
Que
nos povoam o peito
Apesar
de rasteiro, eu quero ser mais,
Apesar
de caído, eu anseio voar...
A. Alves Cardoso
Menino do Arco
MENINO
DO ARCO
E vínhamos
vindo, do alto das manhãs,
por
entre as brumas, como um bando de petizes,
ainda
imberbes, ainda de calções,
com
lágrimas nos olhos, infelizes...
Fomos
arrancados ao seio protetor das nossas mães
ao solo
onde nascemos, onde era o ninho,
e como
árvores sacudidos pelos ventos
fomos
atirados ao destino...
Uma mãe
chorosa, limpando as lágrimas junto à porta,
também
ela infeliz e destroçada
como se
lhe arrancassem o coração em sangue
pela
espada...
Mas o
homem é feito de lava, dos vulcões,
de
tempestades, de angústias e cansaços,
peito
aberto ao futuro e ao que vier
e à
infinita dimensão dos nossos braços...
Lá
longe, a mãe, por entre a névoa,
do
silêncio esmagador e da solidão atroz,
olhava
os loges, esperando,
e quem
vinha chegando não era nenhum de nós...
E entre
o som e a fúria, entre a dor e a solidão,
de novo
transplantados, demos frutos
e
brotamos do solo à clara luz do dia
mais
fortes, mais seguros, mais ágeis, mais astutos...
E
caminhamos sempre em frente sem nunca nos determos
que a
jornada ainda agora começara
e fomos
soletrando letra a letra o que sonhamos
e indo
mais longe, se mais longe houvera...
E
ninguém conseguiu deter a marcha
destes
frágeis seres arrancados à infância
e hoje
estamos por aí mais fortes do que dantes
espalhados
como sementes de ouro na distância...
E
olhando para trás, de regresso ao tempo primitivo e puro
ao
tempo em que o tempo era primevo
não
deixamos de ser ainda um bando de petizes
é certo
que mais velhos, não renego
Mas o
homem é feito destes sonhos
desta
luz e sol, desta nunca finda caminhada,
e por
isso vamos por aí soltos no vento,
que à
nossa frente ainda há muita estrada...
A. Alves Cardoso
LIVRO - ( Ciclo António A. Cardoso)
LIVRO
Uma
ideia longínqua, como névoa distante,
Vem
crescendo na memória
E
depois outra se lhe junte, e outra, e outra,
Como
um rebanho de muitas ovelhas…
E
o pastor no alto da montanha
Olha
para as suas ideias
E
conhece cada uma delas pelo nome.
E
defende-as dos lobos
E
dos muitos caminhos que dão para lado nenhum
E
recolhe a melhor lã no seu olhar
E
o leite dos seus úberes em silêncio…
E
depois, sereno e grande,
Retira
a sua flauta da sacola
E
faz nascer os puros sons escritos
Comendo
no papel seus carreirinhos de formigas
E
o livro nasce e o milagre acontece
E
sempre que alguém o folhear
Um
rebanho de ideias voará
Como
se fosse espalhado pelo vento…
A.
Alves Cardoso
sexta-feira, 25 de maio de 2018
VINHO DO PORTO - (Ciclo António A. Cardoso)
VINHO DO PORTO
Das lágrimas dos homens e dos Deuses
nasceram límpidas estas águas de ouro
que desenharam o dorso das montanhas
e formaram, ao fundo, o rio Douro…
E dos socalcos de xisto e das alturas
feitos de trabalho intenso e mouro
surgiu um néctar, único no mundo.
cada gota dele é um tesouro!
Um barco navegando medos e procelas
vai descendo o rio, cheio de uvas de ouro
colhidas com o suor de tantos braços
rezando à Virgem que não haja agouro…
E vieram naufrágios, perdas e fracassos,
que as águas revoltas são raivosos touros
mas o homem é feito de rocha, de granitos,
heróis aclamados dos vindouros…
Os mortais, como Noé, sempre beberam
deste vinho de levantar um morto
e os Deuses sorridentes concluíram
Valeu a pena fazermos este Porto!
A. Alves Cardoso
HOMEM - ( Ciclo António A. Cardoso)
HOMEM
Partículas de Deus, eis o que
somos,
Árvores primitivas, divindades
A mão divina segurando os gomos
De um Adão de todas as idades.
Tudo o que quisermos ser, é o
que somos,
Apesar das nossas vis
humanidades
E o que existe já está nos
tomos
Das nossas mesquinhas feiras de
vaidades.
Somos deuses e deusas, quase
eternos,
Feitos de pó e sargaço, feitos
de lama
E devorados por dentro pela
chama!
E nem a clara frialdade dos
invernos
Apaga a pouca luz que recebemos
Ou esconde a insatisfação do
que não temos...
A. Alves Cardoso
RETRATO AO SOL - (Ciclo António A. Cardoso)
RETRATO
AO SOL
O
muro. A cal. O sol fustigando…
O
teu rosto
Na
luz
Girassol
rodando
No
muro a brancura da cal…
A
tarde caindo
Pela
planície adentro
Como
alguém a levantar
Paredes
aos olhos…
A
luz. O teu rosto na cal.
O
sol descendo as paredes
De
luz
E
eu estreitando-te no peito
No
muro dos meus braços famintos…
A. Alves
Cardoso
quinta-feira, 24 de maio de 2018
DESENGANO (Ciclo António A. Cardoso)
DESENGANO
Um rio nos divide e no entanto
Há barcos e marés, há ventos favoráveis.
Que importa o medo, a angústia, o canto
Das sereias, as dúvidas insanáveis?
O rio corre no seu leito
A caminho do oceano
E nós seguimos pelo caminho estreito
Do nosso desengano…
A. Alves Cardoso
Infância - (Ciclo António A. Cardoso)
INFÂNCIA
Eu
regresso à infância
Como
quem volta de um país longínquo
Trazendo
as memórias dolentes
Das
amendoeiras em flor
Ou
das cerejeiras carregadas de frutos.
Era
um regressar de nunca ter ido
De
nunca ter deixado de pertencer
Àquele
momento em que o sol
Deambula,
em cor, pelas searas
Pelos
largos campos lavrados
Onde
fecundam carnalmente as sementes….
É a
minha visão da casa lá longe
Que
me segue quando
Me
sento, junto aos leões, em Trafalgar Square
Ou
deambulo ao longo do Sena
Ou
nas altas neves dos Diablerets.
É
como se eu fosse nimbado
Ou
caminhasse todos esses lugares
Quando
corria descalço entre as levadas
Ou
me esgueirava, furtivo, entre os trigos…
E é,
acreditem, uma sensação física
Uma
imersão no sublime
Naquele
lado do mundo
Em
que tudo é longínquo
Mas
ao mesmo tempo de uma realidade infinita
De
uma realidade que nos marca
E
confunde…
Havia
a noite onde colhíamos os sonhos
E
onde dormiam, no fundo da cama,
As
pedrinhas, os berlindes, aquelas alegrias
Com
que no dia seguinte cobríamos o chão
Rodando
o arco, criando arco-íris
Trepando
às grandes árvores,
Aos
nossos Himalaias da infância.
E
suba eu mesmo às mais altas montanhas,
Aos
maiores picos ou torres que haja no mundo,
Ficam
sempre mais baixas
Do
que as minhas árvores…
E
mesmo a ópera em Viena
As
valsas, as grandes árias de Verdi
De
Puccini, de Bach
Não
se comparam aos murmúrios
Da
águas que me deslizam
Na
alma…
Águas
sempre antigas, puríssimas, correndo de seixo em seixo
Até
às minhas mãos abertas a colhê-las.
Aquele
som primitivo, mineral
Correndo
por dentro dos veios da terra
É um
chamamento insistente, de longe
Que
me obriga a regressar
Como
quem volta de um país longínquo…
É o
apelo telúrico da terra
É o
som das sementes no ventre das leivas
É o
sol a estourar
Luz
derramada como se se entornasse o sol
Pelos
campos…
Não
preciso de passaporte
Nem
dos comboios antigos
Por
entre as amendoeiras
Nem
que me digam onde fica o sol.
Eu
sigo de olhos fechados
Através
de janelas deixadas abertas
Como
feromonas antigas
A
indicar-me o caminho
Como
quem volta de um
País
longínquo…
A.
Alves Cardoso
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