domingo, 27 de maio de 2018

TESTAMENTO





TESTAMENTO

Depois de fechar olhos
São livres de vender as casas de renda, os pinhais
Os carros, os móveis, as acções
De levantar as poupanças, os depósitos a prazo
E o pouco que tiver à ordem.

Mas hão-de penar nos infernos
Se ousarem vender a casa-mãe
Os aidos, as terras que rodeiam a casa
E de onde sempre brotaram águas boas e grandes.
Nem é pelo valor
É pelos passos, pelas mãos gretadas, terrosas
Pelos olhos que ali se demoraram
Pelas árvores que cresceram connosco
Familiares e frutíferas
Pelos cheiros que se entranharam na terra
E ressumam
Pelo mel das colmeias amigas
Que conheciam os donos
Pelos corpos a amarem-se entre os fenos e trigos
Pelo respirar antigo dos meus mortos
Pelas palavras que impugnam os solos
Como bocas presentes em tudo o que cresce
Como se elas nascessem e morressem ali
Como nós.
Pelos nomes familiares que lhes demos
Como se fizessem parte da nossa família.
Ali estão os rostos, os olhos, os sonhos
Ali estão os segredos, as lutas, as veias jugulares da existência
Sinais indeléveis, sinais de quem cuidou
Amorosamente da terra e dela recolheu
os frutos que enchem as tulhas
e os altos fumeiros.
Há ali, em tudo, vidas suspensas
Vidas que se fundiram nos húmus
Que se entranharam nos poros
E que são a nossa identidade profunda.
Cada árvore, é um todo, com alma, com nome.
Cada espaço, a larga extensão de nós mesmos
E ali, naquela harmonia que não se
Encontra nos livros, abundam as vozes
Que dançam ainda entre as árvores
E que não devem espantar-se.
Eles pertencem ali.
Nada ali é anónimo. Tudo tem nome
As árvores, as fontes, os sítios, os caminhos, os muros
E há uma simbiose como se
A mão forte do meu pai
Ainda estivesse poisada no tronco das cerejeiras
Ou corresse ainda pelo ondear das searas
Como o acariciar-se o lombo molhado dos bois
Ou a voz mais suave da mãe
Não fosse capaz de espantar as aves que debicavam o sol
Nas negras terras lavradas
Ou ainda se ouvisse o rumorejar
Dos nossos passos correndo
Atrás de borboletas mágicas e pássaros alados.
Talvez vos convença a não vender
Se forem sentar-se, no crepúsculo,
Diante daquela catedral
Onde reina o silêncio de tantas vozes
Impressas
E hão-de ouvir de certeza
Os meus passos
No tempo das cerejas, no tempo das uvas
Como a lembrar-vos de que ainda
Ali moro.
Há em cada tronco das árvores
Em cada muro ou parede
A sombra de quem acabou
De tocar-lhes.
E vejo tudo por entre as árvores
Como algo fugitivo e distante
Como algo perene e presente
É nesse espaço que eu moro
E que habitam as vozes de que sou feito
É um território só compreendido
De quem vê para dentro
Sentem-se no alpendre
Defronte da casa, junto à capela
E olhem em volta
Tudo o que vêm sou eu
E as vozes de todos os outros
Daqueles que ao morrer
Me deixaram este mesmo desígnio
Vendam tudo, mesmo tudo
Mas não me vendam a alma.

António Alves Cardoso

O PÃO




O pão adormecia longamente nas masseiras
Até o forno vigoroso e forte
Se encheu de lumes
E aquela espera se transformar em rede cheia
De saborosos paladares…

A minha mãe, enfarinhada
Retirava as broas
Que haveriam de durar
Toda a semana…

As nossas bocas
Retalhavam aqueles odores quentes
Como uma plenitude toda
Digna de filósofos…

António Alves Cardoso

sábado, 26 de maio de 2018

Se... - (Ciclo António A. Cardoso)



Se...

Se eu tivesse o dom da palavra
E fosse tecelão de frases e verbos
Faria um tapete imaginário de rosas
E uma casa algures poisada nas nuvens...

Se os dedos conseguissem ser violinos,
Oboés, cítaras ou mágicas flautas
O teu acordar seria sempre uma festa
E adormeceria sob o pianíssimo de uma sonata barroca....

Mas sou o que sou, limitado, imperfeito,
De voz rouca e dedos sem asas
Mas mesmo assim queria voar
Por entre os céus dos teus braços abertos...

Que ninguém é dono de todos os sonhos
Nem pastor de futuros e ânsias
Que nos povoam o peito
Apesar de rasteiro, eu quero ser mais,
Apesar de caído, eu anseio voar... 


                                               A. Alves Cardoso




Menino do Arco



MENINO DO ARCO

E vínhamos vindo, do alto das manhãs,
por entre as brumas, como um bando de petizes,
ainda imberbes, ainda de calções,
com lágrimas nos olhos, infelizes...

Fomos arrancados ao seio protetor das nossas mães
ao solo onde nascemos, onde era o ninho,
e como árvores sacudidos pelos ventos
fomos atirados ao destino...

Uma mãe chorosa, limpando as lágrimas junto à porta,
também ela infeliz e destroçada
como se lhe arrancassem o coração em sangue
pela espada...

Mas o homem é feito de lava, dos vulcões,
de tempestades, de angústias e cansaços,
peito aberto ao futuro e ao que vier
e à infinita dimensão dos nossos braços...

Lá longe, a mãe, por entre a névoa,
do silêncio esmagador e da solidão atroz,
olhava os loges, esperando,
e quem vinha chegando não era nenhum de nós...

E entre o som e a fúria, entre a dor e a solidão,
de novo transplantados, demos frutos
e brotamos do solo à clara luz do dia
mais fortes, mais seguros, mais ágeis, mais astutos...

E caminhamos sempre em frente sem nunca nos determos
que a jornada ainda agora começara
e fomos soletrando letra a letra o que sonhamos
e indo mais longe, se mais longe houvera...

E ninguém conseguiu deter a marcha
destes frágeis seres arrancados à infância
e hoje estamos por aí mais fortes do que dantes 
espalhados como sementes de ouro na distância...

E olhando para trás, de regresso ao tempo primitivo e puro
ao tempo em que o tempo era primevo
não deixamos de ser ainda um bando de petizes
é certo que mais velhos, não renego

Mas o homem é feito destes sonhos
desta luz e sol, desta nunca finda caminhada,
e por isso vamos por aí soltos no vento,
que à nossa frente ainda há muita estrada...


                                                             A. Alves Cardoso 


LIVRO - ( Ciclo António A. Cardoso)




LIVRO 

Uma ideia longínqua, como névoa distante,
Vem crescendo na memória
E depois outra se lhe junte, e outra, e outra,
Como um rebanho de muitas ovelhas…

E o pastor no alto da montanha
Olha para as suas ideias
E conhece cada uma delas pelo nome.

E defende-as dos lobos
E dos muitos caminhos que dão para lado nenhum
E recolhe a melhor lã no seu olhar
E o leite dos seus úberes em silêncio…

E depois, sereno e grande,
Retira a sua flauta da sacola
E faz nascer os puros sons escritos
Comendo no papel seus carreirinhos de formigas

E o livro nasce e o milagre acontece
E sempre que alguém o folhear
Um rebanho de ideias voará
Como se fosse espalhado pelo vento…  


A. Alves Cardoso 


sexta-feira, 25 de maio de 2018

VINHO DO PORTO - (Ciclo António A. Cardoso)














VINHO DO PORTO

Das lágrimas dos homens e dos Deuses
nasceram límpidas estas águas de ouro
que desenharam o dorso das montanhas
e formaram, ao fundo, o rio Douro…

E dos socalcos de xisto e das alturas
feitos de trabalho intenso e mouro
surgiu um néctar, único no mundo.
cada gota dele é um tesouro!

Um barco navegando medos e procelas
vai descendo o rio, cheio de uvas de ouro
colhidas com o suor de tantos braços
rezando à Virgem que não haja agouro…

E vieram naufrágios, perdas e fracassos,
que as águas revoltas são raivosos touros
mas o homem é feito de rocha, de granitos,
heróis aclamados dos vindouros…

Os mortais, como Noé, sempre beberam
deste vinho de levantar um morto
e os Deuses sorridentes concluíram
Valeu a pena fazermos este Porto!


                           A. Alves Cardoso 


HOMEM - ( Ciclo António A. Cardoso)



HOMEM

Partículas de Deus, eis o que somos,
Árvores primitivas, divindades
A mão divina segurando os gomos
De um Adão de todas as idades.
Tudo o que quisermos ser, é o que somos,
Apesar das nossas vis humanidades
E o que existe já está nos tomos
Das nossas mesquinhas feiras de vaidades.
Somos deuses e deusas, quase eternos,
Feitos de pó e sargaço, feitos de lama
E devorados por dentro pela chama!
E nem a clara frialdade dos invernos
Apaga a pouca luz que recebemos
Ou esconde a insatisfação do que não temos...
                           
 A. Alves Cardoso

RETRATO AO SOL - (Ciclo António A. Cardoso)



RETRATO AO SOL


O muro. A cal. O sol fustigando…
O teu rosto
Na luz
Girassol rodando
No muro a brancura da cal…

A tarde caindo
Pela planície adentro
Como alguém a levantar
Paredes aos olhos…

A luz. O teu rosto na cal.
O sol descendo as paredes
De luz
E eu estreitando-te no peito
No muro dos meus braços famintos… 

A. Alves Cardoso 

quinta-feira, 24 de maio de 2018

DESENGANO (Ciclo António A. Cardoso)



DESENGANO

Um rio nos divide e no entanto 
Há barcos e marés, há ventos favoráveis. 
Que importa o medo, a angústia, o canto 
Das sereias, as dúvidas insanáveis? 

O rio corre no seu leito 
A caminho do oceano 
E nós seguimos pelo caminho estreito 
Do nosso desengano…


A. Alves Cardoso 


Infância - (Ciclo António A. Cardoso)





     
     INFÂNCIA  









Eu regresso à infância
Como quem volta de um país longínquo
Trazendo as memórias dolentes
Das amendoeiras em flor
Ou das cerejeiras carregadas de frutos.

Era um regressar de nunca ter ido
De nunca ter deixado de pertencer
Àquele momento em que o sol
Deambula, em cor, pelas searas
Pelos largos campos lavrados
Onde fecundam carnalmente as sementes….

É a minha visão da casa lá longe
Que me segue quando
Me sento, junto aos leões, em Trafalgar Square
Ou deambulo ao longo do Sena
Ou nas altas neves dos Diablerets.

É como se eu fosse nimbado
Ou caminhasse todos esses lugares
Quando corria descalço entre as levadas
Ou me esgueirava, furtivo, entre os trigos…

E é, acreditem, uma sensação física
Uma imersão no sublime
Naquele lado do mundo
Em que tudo é longínquo
Mas ao mesmo tempo de uma realidade infinita
De uma realidade que nos marca
E confunde…

Havia a noite onde colhíamos os sonhos
E onde dormiam, no fundo da cama,
As pedrinhas, os berlindes, aquelas alegrias
Com que no dia seguinte cobríamos o chão
Rodando o arco, criando arco-íris
Trepando às grandes árvores,
Aos nossos Himalaias da infância.

E suba eu mesmo às mais altas montanhas,
Aos maiores picos ou torres que haja no mundo,
Ficam sempre mais baixas
Do que as minhas árvores…

E mesmo a ópera em Viena
As valsas, as grandes árias de Verdi
De Puccini, de Bach
Não se comparam aos murmúrios
Da águas que me deslizam
Na alma…

Águas sempre antigas, puríssimas, correndo de seixo em seixo
Até às minhas mãos abertas a colhê-las.
Aquele som primitivo, mineral
Correndo por dentro dos veios da terra
É um chamamento insistente, de longe
Que me obriga a regressar
Como quem volta de um país longínquo…

É o apelo telúrico da terra
É o som das sementes no ventre das leivas  
É o sol a estourar
Luz derramada como se se entornasse o sol
Pelos campos…

Não preciso de passaporte
Nem dos comboios antigos
Por entre as amendoeiras
Nem que me digam onde fica o sol.

Eu sigo de olhos fechados
Através de janelas deixadas abertas
Como feromonas antigas
A indicar-me o caminho
Como quem volta de um
País longínquo…

A. Alves Cardoso