TESTAMENTO
Depois de
fechar olhos
São livres
de vender as casas de renda, os pinhais
Os carros,
os móveis, as acções
De levantar
as poupanças, os depósitos a prazo
E o pouco
que tiver à ordem.
Mas hão-de
penar nos infernos
Se ousarem
vender a casa-mãe
Os aidos, as
terras que rodeiam a casa
E de onde
sempre brotaram águas boas e grandes.
Nem é pelo
valor
É pelos
passos, pelas mãos gretadas, terrosas
Pelos olhos
que ali se demoraram
Pelas
árvores que cresceram connosco
Familiares e
frutíferas
Pelos cheiros
que se entranharam na terra
E ressumam
Pelo mel das
colmeias amigas
Que
conheciam os donos
Pelos corpos
a amarem-se entre os fenos e trigos
Pelo
respirar antigo dos meus mortos
Pelas
palavras que impugnam os solos
Como bocas
presentes em tudo o que cresce
Como se elas
nascessem e morressem ali
Como nós.
Pelos nomes
familiares que lhes demos
Como se
fizessem parte da nossa família.
Ali estão os
rostos, os olhos, os sonhos
Ali estão os
segredos, as lutas, as veias jugulares da existência
Sinais
indeléveis, sinais de quem cuidou
Amorosamente
da terra e dela recolheu
os frutos
que enchem as tulhas
e os altos
fumeiros.
Há ali, em
tudo, vidas suspensas
Vidas que se
fundiram nos húmus
Que se
entranharam nos poros
E que são a
nossa identidade profunda.
Cada árvore,
é um todo, com alma, com nome.
Cada espaço,
a larga extensão de nós mesmos
E ali,
naquela harmonia que não se
Encontra nos
livros, abundam as vozes
Que dançam
ainda entre as árvores
E que não
devem espantar-se.
Eles
pertencem ali.
Nada ali é
anónimo. Tudo tem nome
As árvores,
as fontes, os sítios, os caminhos, os muros
E há uma
simbiose como se
A mão forte
do meu pai
Ainda
estivesse poisada no tronco das cerejeiras
Ou corresse
ainda pelo ondear das searas
Como o
acariciar-se o lombo molhado dos bois
Ou a voz
mais suave da mãe
Não fosse
capaz de espantar as aves que debicavam o sol
Nas negras
terras lavradas
Ou ainda se
ouvisse o rumorejar
Dos nossos
passos correndo
Atrás de
borboletas mágicas e pássaros alados.
Talvez vos
convença a não vender
Se forem
sentar-se, no crepúsculo,
Diante
daquela catedral
Onde reina o
silêncio de tantas vozes
Impressas
E hão-de
ouvir de certeza
Os meus
passos
No tempo das
cerejas, no tempo das uvas
Como a
lembrar-vos de que ainda
Ali moro.
Há em cada
tronco das árvores
Em cada muro
ou parede
A sombra de
quem acabou
De
tocar-lhes.
E vejo tudo
por entre as árvores
Como algo
fugitivo e distante
Como algo
perene e presente
É nesse
espaço que eu moro
E que
habitam as vozes de que sou feito
É um
território só compreendido
De quem vê
para dentro
Sentem-se no
alpendre
Defronte da
casa, junto à capela
E olhem em
volta
Tudo o que
vêm sou eu
E as vozes
de todos os outros
Daqueles que
ao morrer
Me deixaram
este mesmo desígnio
Vendam tudo,
mesmo tudo
Mas não me
vendam a alma.
António Alves Cardoso
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