terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Por vezes, os duendes


     
                           
Por vezes, os duendes                                   
Por vezes, os duendes acordam-me
E ordenam-me que escreva
Que me deite em sangue
Sobre as frases que persistem em não vir …
Não há poesia nenhuma
Que me prenda, que me agarre
E fico parado, imóvel, à escuta
Que uma ideia, um sentimento, uma frase
Desencadeie em mim
Aquele interior fervente
Aquele instinto telúrico
Que me faça ir pelos ares
Na busca do indizível.
O sol amortalha-se na noite
O silêncio apodera-se das sombras
Os lumes extinguem-se na areia
Como peixes arfando
E nem o vento que a noite levanta
Me traz uma voz, uma frase que seja
Que venha iniciar-se o poema
E a mão à espera que uma pomba
Poise
E arraste o primeiro fio do meu tapete
Como quem desenha os carreirinhos das frases
Com que hei-de construir
O que os duendes me ordenem.
E nenhuma pomba até hoje voou
Pelas janelas que em vão tenho abertas
Talvez nem haja pomba, duendes
Nem sequer sombras,
Talvez seja só eu a sangrar-me
Como é costume os poetas sangrarem …

António A. Cardoso

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A Reabilitação do Amor


Resultado de imagem para maria amalia vaz de carvalho









À indiferença oponhamos o amor, à dúvida oponhamos a fé
O céu tem ainda o azul radiante dos dias da mocidade
a natureza é ainda a bela insensível,
que assiste radiosa e iluminada às nossas lágrimas eternas,
que o vento enxuga num momento!
Contemplemos de mais alto a evolução dos ideais 
e a transformação das coisas
Se na terra somos efémeros de uma hora,
nunca se quebra a cadeia que se vai forjando,
dos ideais belos que concebemos ao passar.



Maria Amália Vaz de Carvalho




sábado, 24 de fevereiro de 2018

Obrigada, por este já longo passeio


Poema para Deus

Não te engano, nem me engano
Sou imagem reflectida da tua inquietude
Só, na força centrípeta que nos une
Traço horizontes que te motivem

Escorro da lembrança quando te conheci
As lágrimas sem fim dos ciclos de dor
Quiçá, cálice sagrado de cada vida em flor
Pérolas do rosário que desfias

Pergunto-me que te dei do que nada te devo
E quanto me deste do muito que prometes
Nesta simples equação encontrei-te de novo
Quando me disseste: és braço da minha libertação

Voltei a encontrar-te, lembras?
Naquela tarde distante em que te confrontei
Com as armas com que me equipaste
Moldei-as em fogo, delas fiz bordão de peregrinação

Recrio em tudo prece e oração
Em sentir de profunda compaixão
Para colmatar tua inquietude e solidão
Deus, meu companheiro de peregrinação 

Obrigada, por este já longo passeio


Maria Adelina


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Estradas de Prata




Estradas de Prata

O mundo das formas mudou
Nuvens passeiam no chão
As árvores ensaiam o voo
E as aves fazem ninho no céu
O mar está em gestação
Do poder que remete ao olvido
Estrelas morreram sem glória
Sem luz sem brilho
Recobrindo de lodo
As estradas de prata
Frio, tanto frio
Loucura ou feitiço
Conto sem final feliz
Do sapiens, que regrediu 

Ao Cosmos Imanifestado


Nina


domingo, 18 de fevereiro de 2018

O Amor



O Amor

O Amor é a Força que move o Cosmos
E faz vibrar cada partícula no sentido da evolução.
É a Energia que se solta da dança cósmica do Absoluto
E anima a vida em miríadas de formas e não formas.
É a singularidade que flui da diversidade
E se funde em pares,
E dos pares surge o milagre da vida.

Só com um acto de Amor foi possível unir as células ao serviço da consciência
E o Sol espalhar a sua Luz criadora.
Só o Amor permite o desabrochar das flores
E inebriarmo-nos com o seu perfume.
É a beleza percusora da vida renovada.

Se o Logos parasse de Amar o seu multiuniverso,
Este deixaria imediatamente de existir.

O Amor é tudo isto
E o inefável que nos guia em direção à Luz.

Hoje e sempre celebremos o Amor


Jorge Moreira

sábado, 17 de fevereiro de 2018

A Palavra Mágica




A Palavra Mágica


Certa palavra dorme na sombra 
de um livro raro.
 
Como desencantá-la?
 
É a senha da vida
 
a senha do mundo.
 
Vou procurá-la.
 

Vou procurá-la a vida inteira
 
no mundo todo.
 
Se tarda o encontro, se não a encontro,
 
não desanimo,
 
procuro sempre.
 

Procuro sempre, e minha procura
 
ficará sendo
 
minha palavra.
 


Carlos Drummond de Andrade, in 'Discurso da Primavera'


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O TEU OLHAR




Quero esse olhar
Que pára no silêncio
Para entender a tua alma
Será indiferença, distância ou amor?...

Não sei se me engano
Mas queria saber da essência do teu ser
Sem gestos sem palavras

Talvez o teu olhar
Não queira dizer nada
Ou talvez um dia diga
Quero envolver-me
Nas teias da tua vida

Continuo a ler o teu silêncio
Sem gestos sem palavras
Até encontrar-se no teu caminho
Para conhecer os afectos do teu esplendor
Nas confidências que não sei
E que quero conhecer

Álvaro Lima


terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

A Forma Justa





A Forma Justa


Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo.

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas" 


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Estende-me a tua mão…





Estende-me a tua mão…

Aproxima-te… sem temor…

Os Anjos recolhem o grão sagrado
Da Alma desfolhada na eira do vento
Mós de vida, onde o espírito se faz pão

O coração ajusta-se à medida de tudo
Socalcos generosos, quanta fartura…
Dores Inteiras - Bênçãos Plenas
E um altar para as consagrar

Já não quer, deixa só acontecer
Mas dá-se por inteiro
É celeiro que abastece o tudo
De Amor, é todo seu ser

Ela sente, canta, e fala sozinha
É raiz que vive, desprendendo-se
A alma aguça os sentidos, é que…
Já espreitam as saudades do lar

Velhice Santa, Santa,
Estende-me a tua mão…



A.






quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Instrução Primária



Não saibas: imagina…
Deixa falar o mestre, e devaneia…
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.

Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões…
Um á-bê-cê secreto
Que soletras à margem das lições…

Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,

Aias da fantasia...

Miguel Torga


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

É um adeus



É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus...
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer a humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de líquido pudor,
Um sorriso de amor,

E mais nada.

Miguel Torga

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Torga...sempre Torga...



Depois da Chuva
Abre a janela, e olha!
Tudo o que vires é teu.
A seiva que lutou em cada folha,
E a fé que teve medo e se perdeu.
Abre a janela, e colhe!
É o que quiser a tua mão atenta:
Água barrenta,
Água que molhe,
Água que mate a sede...
Abre a janela, quanto mais não seja
Para que haja um sorriso na parede!

                                                                   
Miguel Torga