quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Livro de horas



Livro de horas

Aqui, diante de mim, 
Eu, pecador, me confesso 
De ser assim como sou. 
Me confesso o bom e o mau 
Que vão ao leme da nau 
Nesta deriva em que vou. 

Me confesso 
Possesso 
Das virtudes teologais, 
Que são três, 
E dos pecados mortais, 
Que são sete, 
Quando a terra não repete 
Que são mais. 

Me confesso 
O dono das minhas horas. 
O das facadas cegas e raivosas 
E o das ternuras lúcidas e mansas. 
E de ser de qualquer modo 
Andanças 
Do mesmo todo. 

Me confesso de ser charco 
E luar de charco, à mistura. 
De ser a corda do arco 
Que atira setas acima 
E abaixo da minha altura. 

Me confesso de ser tudo 
Que possa nascer e mim 
De ter raízes no chão 
Desta minha condição. 
Me confesso de Abel e de Caim. 

Me confesso de ser Homem 
De ser um anjo caído 
Do tal céu que Deus governa. 
De ser um monstro saído 
Do buraco mais fundo da caverna. 
Me confesso de ser eu 
Eu, tal e qual como vim 
Para dizer que sou eu 
Aqui, diante de mim! 


Miguel Torga



4 comentários:

Unknown disse...

Eterno! Gosto da harmonia entre o poema e a imagem.

Unknown disse...

Eterno! Assim sinto a Torga, eterno como as fragas da serra amarela.

Cecília Pires disse...

Um homem é as suas qualidades, virtudes e também os seus defeitos e coisas menos boas. O homem, na sua natural e intrínseca imperfeição. Miguel Torga, um poeta consciente, lúcido, inconformado, sofrido, telúrico...

Maria Adelina Lopes disse...

Outra definição perfeita para Miguel Torga "telúrico"