sexta-feira, 6 de julho de 2018

O SANTINHO


  O SANTINHO

     A cor esbatida e gasta aviva-lhe a memória. O meu santinho é uma estampa e nada mais. Tem dentro dele toda uma vida. Tem dentro dele a minha Mãe.
     Aprisionou-a dentro das linhas de uma esquadria que a deixa inerte. Aprisionou-a para a guardar. As quatro linhas da cercadura moldam-lhe o rosto; deixam-na branca, de um branco de anjo, de um branco, branco, que nem eu mesmo soube apagar. O branco fere, tira-lhe a vida e a esquadria não deixa espaço, nem uma aberta para a soltar. Fica amarrada à minha espera.
     Não tenho aqui, mas vou sonhar. Sonhar a vida. Trazer tesoura. Fazer magia para a soltar. A minha estampa é um santinho e eu vou cortá-lo, a toda a volta. Ficará outro, mesmo esbatido, ganhará vida, cancela aberta para a Mãe voltar... Amarras santas também amarram e eu quero-as soltas: quero uma aberta para ver a Mãe.
     E a tesoura deixa-me a estampa retalhadinha toda em redor do rosto branco, meio difuso, meio apagado, da Mãe que encerra toda uma vida fora do altar. É que o santinho tem lá um anjo. Fechou-se lá para descansar. Venha a tesoura! Venha a magia! Não dou este anjo, nem para o altar!
     O meu anjinho não é já anjo... E é menina!... Perdeu as asas. Não sai do sítio. As quatro linhas deixam-no preso. Preso a uma estampa que é de papel... Vou recortá-lo. Mesmo sem asas, ainda é menina e é minha Mãe... Vou libertá-lo, dar-lhe outras asas, dar-lhe um caixilho do seu tamanho, mesmo à medida deste meu gesto que tira os santos do seu altar!
     E o meu santinho, já esbatido, é mais pequeno, mas diz-me coisas de me embalar... 


                                      Maria Aida Araújo Duarte

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