A PALAVRA
Se eu soubesse a
palavra,
a que subjaz aos
milhões das que já disse,
a que às vezes se me
anuncia num súbito silêncio interior,
a que se inscreve entre
as estrelas contempladas pela noite,
a que estremece no
fundo de uma angústia sem razão,
a que sinto na presença
oblíqua de alguém que não está,
a que assoma ao olhar
de uma criança que pela primeira vez interrogou,
a que inaudível se
entreouve numa praia deserta no começo do Outono,
a que está antes de uma
grande Lua nascer,
a que está atrás de uma
porta entreaberta onde não há ninguém,
a que está no olhar de
um cão que nos fita a compreender,
a que está numa erva de
um caminho onde ninguém passa,
a que está num astro
morto onde ninguém foi,
a que está numa pedra
quando a olho a sós,
a que está numa
cisterna quando me debruço à sua borda,
a que está numa manhã
quando ainda nem as aves acordaram,
a que está entre as
palavras e não foi nunca uma palavra,
a que está no último
olhar de um moribundo, e a vida e o que nela foi fica a uma distância infinita,
a que está no olhar de
um cego quando nos fita e resvala por nós,
– se eu soubesse a
palavra,
a única, a última,
e pudesse depois ficar
em silêncio para sempre…
(Vergílio
Ferreira)
in Uma Esplanada
sobre o mar (Difel, 1986)
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