quinta-feira, 24 de maio de 2018

Infância - (Ciclo António A. Cardoso)





     
     INFÂNCIA  









Eu regresso à infância
Como quem volta de um país longínquo
Trazendo as memórias dolentes
Das amendoeiras em flor
Ou das cerejeiras carregadas de frutos.

Era um regressar de nunca ter ido
De nunca ter deixado de pertencer
Àquele momento em que o sol
Deambula, em cor, pelas searas
Pelos largos campos lavrados
Onde fecundam carnalmente as sementes….

É a minha visão da casa lá longe
Que me segue quando
Me sento, junto aos leões, em Trafalgar Square
Ou deambulo ao longo do Sena
Ou nas altas neves dos Diablerets.

É como se eu fosse nimbado
Ou caminhasse todos esses lugares
Quando corria descalço entre as levadas
Ou me esgueirava, furtivo, entre os trigos…

E é, acreditem, uma sensação física
Uma imersão no sublime
Naquele lado do mundo
Em que tudo é longínquo
Mas ao mesmo tempo de uma realidade infinita
De uma realidade que nos marca
E confunde…

Havia a noite onde colhíamos os sonhos
E onde dormiam, no fundo da cama,
As pedrinhas, os berlindes, aquelas alegrias
Com que no dia seguinte cobríamos o chão
Rodando o arco, criando arco-íris
Trepando às grandes árvores,
Aos nossos Himalaias da infância.

E suba eu mesmo às mais altas montanhas,
Aos maiores picos ou torres que haja no mundo,
Ficam sempre mais baixas
Do que as minhas árvores…

E mesmo a ópera em Viena
As valsas, as grandes árias de Verdi
De Puccini, de Bach
Não se comparam aos murmúrios
Da águas que me deslizam
Na alma…

Águas sempre antigas, puríssimas, correndo de seixo em seixo
Até às minhas mãos abertas a colhê-las.
Aquele som primitivo, mineral
Correndo por dentro dos veios da terra
É um chamamento insistente, de longe
Que me obriga a regressar
Como quem volta de um país longínquo…

É o apelo telúrico da terra
É o som das sementes no ventre das leivas  
É o sol a estourar
Luz derramada como se se entornasse o sol
Pelos campos…

Não preciso de passaporte
Nem dos comboios antigos
Por entre as amendoeiras
Nem que me digam onde fica o sol.

Eu sigo de olhos fechados
Através de janelas deixadas abertas
Como feromonas antigas
A indicar-me o caminho
Como quem volta de um
País longínquo…

A. Alves Cardoso



2 comentários:

Unknown disse...

Raízes, Colo, Aromas, Sabores Antigos, nada se desvanece da memória por mais anos que se viva. Parabéns

Unknown disse...

Lindo! O termo Infância por só si é já um poema. A infância é o agasalho das asas, é doce e tem o perfume da eternidade. Gostei.