segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Recordar José Carlos Ary dos Santos





A cidade é um chão de palavras pisadas

A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança  a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância  e a palavra medo.

A cidade é um saco  um pulmão que respira
pela palavra água  pela palavra brisa
A cidade é um poro  um corpo que transpira
pela palavra sangue  pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.

                  José Carlos Ary dos Santos


sábado, 29 de outubro de 2016

Recordar Manuel da Fonseca




O Sol do Mendigo

Olhai o vagabundo que nada tem
e leva o sol na algibeira!
Quando a noite vem
pendura o sol na beira dum valado
e dorme toda a noite à soalheira...

Pela manhã acorda tonto de luz
vai ao povoado e grita:
- Quem me roubou o sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios rosnam:
- Que grande bebedeira!

E só à noite se cala o pobre.
Atira-se para o chão
dorme, dorme....

Manuel da Fonseca


sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Recordar Vasco Graça Moura


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O suporte da Música

o suporte da música pode ser a relação
entre um homem e uma mulher, a pauta
dos seus gestos tocando-se, ou dos seus
olhares encontrando-se, ou das suas

vogais adivinhando-se abertas e recíprocas,
ou dos seus obscuros sinais de entendimento,
crescendo como trepadeiras entre eles.
o suporte da música pode ser uma apetência

dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se
ramifica entre os timbres, os perfumes,
mas é também um ritmo interior, uma parcela
do cosmos, e eles sabem-no, perpassando

por uns frágeis momentos, concentrado
num ponto minúsculo, intensamente luminoso,
que a música, desvendando-se, desdobra,
entre conhecimento e cúmplice harmonia.


Vasco Graça Moura  



quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Entardeceres




Entardeceres

Gotas de sol vestem minha alma nua
despida de preceito, mentira, ilusão,
Palavras vãs
mas nunca vazias, do amor que se não diz
porém se faz, e da paixão pela essência da
cópia singela de cada sopro de Deus que
feito homem, se expande em pão e paz e
por tudo, ou tão só,  o que valha a pena


Maria Adelina


Amanheceres



Amanheceres

Dimensão feérica, palpitante, calor
do sol lilás reflectido na parede de cristal, ressoada
de gotículas de prata que se abrem, devagar, como uma
flor, que de seu cálice, emitem o mais belo som, tua voz
alta torre de silêncio que o cansaço não me deixa
escalar, despertei, porque a fonte não se esgota e
no mundo dos sonhos se estreita e enriquece na
tese que é Deus a experimentar o

Amor versus Vontade


MariaAdelina

terça-feira, 25 de outubro de 2016



Poema da fascinação

Vou a Ti
Como quem vai,
Antes e depois da Morte,
Para onde lhe ordena o Destino...
Vou a Ti,
Seguindo a luz dos teus olhos,
Subindo por ela,
Caminhando pelo teu olhar
Como uma escadaria d’astros...
O teu vulto,
Lá em cima,
É um palácio branco, a atrair-me...
Quando chegarei,
Ó Eleito,
Diante de Ti?
Quando descerrarás
As tuas portas de luz,
Para receberes
Os lírios e as rosas odorantes
Que andei colhendo
Para te ofertar?
Não demores, não tardes,
Ó Eleito,
Que eu vou a Ti
Como quem vai,
Antes e depois da Morte,
Para onde lhe ordena o Destino...

Poema do regresso

Eleito, ó Eleito!
Era, então, aqui embaixo

Que estavas?..

Cecília Meireles



segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Saudades de ti...


Hoje, na chuva e no vento senti saudades de ti... 

De novo me atrevi a dançar à chuva
Com a força infinita que emanavas
Senti a alegria sem razão que te movia
Feita de risos e sonhos com seres ausentes
E armada só com o olhar, enfrentavas o mundo
Senti o arroubo da sensação duma liberdade plena
Quando esquecias as normas e nos campos te perdias
Senti o fascínio que sentias em decifrar a fala dos olhares
Pois percebias que a boca e os olhos não falam línguas iguais
Senti o amor total que sabias existir, qual tesouro a descobrir

Hoje, senti saudades de ti...

Maria Adelina



domingo, 23 de outubro de 2016




O que me prende é o que te prende:
largo horizonte de outros passados,
raízes fundas presas ao chão
e um mar tão largo.

Palavras soltas num vento agreste,
caminhos rudes determinados,
sombras e sonhos sem condição
e um céu tão vasto.

Meus passos breves não deixam rasto.
Teus passos fundos, fundos estão.
Mas entre o mar e o céu e os nossos passos,
a nossa humanidade é o mesmo laço
irmão.


Glória de Sant'Anna


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

20 de Outubro - Dia do Poeta





    


Janela da Alma










Acomodei-me num cantinho do tempo daqueles que são só da gente. O chá sempre presente na ansiada solidão tirei sortes entre os poetas. Folheava ao acaso sem ordem ou reparo ou sequer intenção…

 Neruda, Florbela, Machado, Torga, Sophia, Vinícius, Cecília, Tagore, Fina, Kalil, Natália...

Coincidência ou imaginação?...Estes e uns tantos mais, confabularam hoje em orquestrada conspiração, nas mais belas odes à expressão fundamental, aquela que o saber ancestral diz ser a janela da alma.
De par em par ofertei-vos o meu olhar que se estende nas páginas impressas do vosso e do meu sentir.

Gratidão infinita aos poetas de todos os tempos.


Maria Adelina





Ser Poeta é...


Dia do Poeta


Poesia?


Dia do Poeta - 20 de Outubro


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Livro de horas



Livro de horas

Aqui, diante de mim, 
Eu, pecador, me confesso 
De ser assim como sou. 
Me confesso o bom e o mau 
Que vão ao leme da nau 
Nesta deriva em que vou. 

Me confesso 
Possesso 
Das virtudes teologais, 
Que são três, 
E dos pecados mortais, 
Que são sete, 
Quando a terra não repete 
Que são mais. 

Me confesso 
O dono das minhas horas. 
O das facadas cegas e raivosas 
E o das ternuras lúcidas e mansas. 
E de ser de qualquer modo 
Andanças 
Do mesmo todo. 

Me confesso de ser charco 
E luar de charco, à mistura. 
De ser a corda do arco 
Que atira setas acima 
E abaixo da minha altura. 

Me confesso de ser tudo 
Que possa nascer e mim 
De ter raízes no chão 
Desta minha condição. 
Me confesso de Abel e de Caim. 

Me confesso de ser Homem 
De ser um anjo caído 
Do tal céu que Deus governa. 
De ser um monstro saído 
Do buraco mais fundo da caverna. 
Me confesso de ser eu 
Eu, tal e qual como vim 
Para dizer que sou eu 
Aqui, diante de mim! 


Miguel Torga



terça-feira, 18 de outubro de 2016

Eternidade



Eternidade

Tempos fecundos, plenos de graça
Aspiramos o aroma intenso da eternidade
Em taças transbordantes de sentires aleatórios
Do que pensamos ser, e do que é, sem a razão saber
Suprimem-se os dias, vive-se uma era em cada inspiração
Peneira-se o joio rasgam-se as mortalhas liberta-se o coração
E a eternidade acontece nos sulcos do arado da palavra que resgata
Nas tonalidades ambarinas de olhares desfeitos na poeira dos desertos
Anjo em mim…
Incólume…cadinho de fogo ígneo, passageiro da vida, na eterna_idade



Maria Adelina


No teu amor por mim




No teu amor por mim

No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera

Ruy Belo


sábado, 15 de outubro de 2016

Manuel da Fonseca - 15 de Outubro de 1911 / 11 de Março de 1993



Ansiedade

Quero compor um poema
onde fremente
cante a vida
das florestas das águas e dos ventos.

Que o meu canto seja
no meio do temporal
uma chicotada de vento
que estremeça as estrelas
desfaça mitos
e rasgue nevoeiros — escancarando sóis!

Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos" 


segunda-feira, 10 de outubro de 2016




ESTRADA PARA LADO NENHUM

Platão caminhava vendo sombras,
Aristóteles as coisas, os reais
Eu vejo a sombra das coisas
E pouco mais!

Sentado junto à caverna
Que existe em cada um de nós
Vejo passar o rio das memórias
Para a foz

Do esquecimento.
Tudo sombras, meu velho Platão,
Tudo sombras! Real, Real
Só a ilusão.

Aristóteles não passa de um grande tolo!
O real não pode ser assim real
Tão doloroso ele é
E tão brutal!

Zenão tinha razão
Zenão é que estava certo
Ninguém chega ao seu destino
Não há longe nem há perto…


A. Alves Cardoso


domingo, 9 de outubro de 2016



Ai se eu fosse pomba

Ai se eu fosse pomba
estenderia minhas asas
alvas ou cor de luar

Com uma vénia
convidava-te a entrar
no mágico tapete voador

Destino?

A primavera dos sensíveis
onde tudo se alcança
aquela onde a poesia está sempre em flor!


Maria Adelina



sexta-feira, 7 de outubro de 2016


Dançando com o Vento



Em leveza, passos de dança primorosos

Sabes p`ra onde vais vento minha voz

Sílfides em voo, nesgas de sol, imortais

Poisos de nuvens, nossos conventos

Rouca de canto tal qual  jograis

Que dançam no vento, asas de ti

Que em mim sustentam...

Verbo, vida, estrelas de luz


Maria Adelina




quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Jorge de Sena - 2 de Novembro 1919 // 4 de Junho 1978




Uma pequenina luz bruxuleante



Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumiére
just a little light
una piccola…em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a advinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
Indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
No meio de nós.
Brilha.

Jorge de Sena