domingo, 19 de junho de 2016

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: <<Fui eu?>>
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa




3 comentários:

Cecília Pires disse...

Um belo poema de Pessoa ortónimo, ilustrativo de uma das temáticas mais significativas da sua poesia: a fragmentação do eu, que depois desencadeia o aparecimento dos heterónimos. Grande poeta, que não foi devidamente reconhecido em vida, como devia, mas que o Destino colocou no lugar certo, num lugar cimeiro da literatura, o lugar que ele merece!

Unknown disse...

Subscrevo!

Maria Adelina Lopes disse...

O profético, o sábio encoberto, que escolheu a poesia como forma de expressão do muito que tinha para tranmitir ao mundo, por isso não podia ser só um.