domingo, 26 de junho de 2016




Ela canta, pobre ceifeira

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

Fernando Pessoa 


3 comentários:

Unknown disse...

A Mulher! A musa inspiradora, uma ceifeira, “rainha do firmamento rural”.
O poeta exalta o canto alegre da ceifeira sabendo-a vestida de rudeza da vida.
Dono de uma musicalidade e de um domínio rítmico invejáveis. Neste poema a diafaneidade das imagens, a comparação com a Natureza, as metáforas, os adjetivos… e claro, a brevidade da vida, o melancólico a burilar o poema. Palmas para o Mestre!

Cecília Pires disse...

Aqui está um dos mais belíssimos poemas de Fernando Pessoa, o génio, ilustrativo de mais uma das suas linhas temáticas: a dor de pensar.
Fernando Pessoa era todo ele pensamento. E sendo ele assim tão complexo, inveja a simplicidade de espírito, a doce inconsciência, da ceifeira, que vive sem pensar/problematizar a vida. Não obstante a rudeza da vida, na sua "alegre inconsciência, ela julga-se feliz!E isso é o mais importante. Fernando Pessoa lamenta-se por, não sua complexidade intelectual, não poder descer à simplicidade da ceifeira, dos simples.
A imagem que acompanha está absolutamente magnífica!

Maria Adelina Lopes disse...

Ao ler/sentir este poema vemos a pessoa em Pessoa e a nossa imaginação voa ao aroma das eiras nos meses estivais.