quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Maria Alberta Menéres - Nasceu a 25 de Agosto 1930




CARACOL

Bato à porta. Ninguém diz:
- Pode entrar, faça favor!
Não há degrau não há voz
nem há fumo nem calor.

E a casa do caracol,
não está pintada de cal
e no entanto brilha ao sol
na sua forma espiral.

Bato à porta não há porta:
só um buraco profundo
um túnel que há-de acabar
no centro daquele mundo.

O caracol foi-se embora.
Porque mudou de espiral?
Porque foi mudar de casa
sem recado nem sinal?


Maria Alberta Menéres

segunda-feira, 22 de agosto de 2016


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O vento sopra lá fora.
Faz-me mais sozinho, e agora
Porque não choro, ele chora.

É um som abstracto e fundo.
Vem do fim vago do mundo.
Seu sentido é ser profundo.

Diz-me que nada há em tudo.
Que a virtude não é escudo
E que o melhor é ser mudo.


Fernando Pessoa

quinta-feira, 18 de agosto de 2016





La poesía es un arma cargada de futuro -Gabriel Celaya-




Quando já nada se espera particularmente exaltante
mas palpitamos e seguimos aquém da consciência,
feramente existindo, cegamente afirmando,
como um pulso que golpeia as trevas,

quando miramos de frente
os vertiginosos olhos claros da morte,
dizemos as verdades;
as bárbaras, terríveis, amorosas crueldades

Dizemos os poemas
que enchem os pulmões dos que, asfixiados,
pedem ser, pedem ritmo,
pedem lei para aquilo que sentem em excesso,

com a velocidade do instinto,
com o raio do prodígio,
como mágica evidência, o real que se transforma
no idêntico a si mesmo.

Poesia para o pobre, poesia necessária
como o pão de cada dia,
como o ar que exigimos treze vezes por minuto,
para ser e enquanto somos dar o sim que glorifica.

Porque vivemos aos tropeços, porque apenas nos deixam
dizer que somos quem somos,
os cânticos não podem ser, sem pecado, um adorno.
Estamos chegando ao fundo.

Maldita a poesia concebida como um luxo
cultural para os neutros
que, lavando-se as mãos, se desentendem e evadem.
Maldigo a poesia de quem não toma partido até manchar-se.

Faço minhas as faltas. Sinto em mim os que sofrem
e canto respirando.
Canto, e canto e cantando para lá de minhas penas,
me amplio.



terça-feira, 16 de agosto de 2016

António Nobre – 16 de Agosto 1867 // 18 de Março 1900




Vaidade, tudo vaidade
Vaidade, meu amor, tudo vaidade!
Ouve: quando eu, um dia, for alguem,
Tuas amigas ter-te-ão amizade,
(Se isso é amizade) mais do que, hoje, têm.

Vaidade é o luxo, a gloria, a caridade,
Tudo vaidade! E, se pensares bem,
Verás, perdoa-me esta crueldade,
Que é uma vaidade o amor de tua mãe...

Vaidade! Um dia, foi-se-me a Fortuna
E eu vi-me só no mar com minha escuna,
E ninguem me valeu na tempestade!

Hoje, já voltam com seu ar composto,
Mas eu, ve lá! eu volto-lhes o rosto...
E isto em mim não será uma vaidade?

António Nobre, in 'Só' 


sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Miguel Torga - 12 de Agosto de 1907 // 17 de Janeiro de 1995



Conquista


Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'